O Que É Morar e Plantar na Favela? Intercâmbio da Rede Favela Sustentável com o Centro de Integração da Serra da Misericórdia Planta Sementes da Soberania Alimentar na Favela [VÍDEO]

A Serra da Misericórdia, o último e maior remanescente de floresta na Zona Norte do Rio de Janeiro, recebeu no dia 6 de agosto o primeiro intercâmbio presencial pós-pandemia organizado pela Rede Favela Sustentável (RFS)*. O anfitrião da troca de saberes entre lideranças comunitárias de toda a região metropolitana foi o Centro de Integração da Serra da Misericórdia (CEM), na Terra Prometida, comunidade do Complexo da Penha. O evento emocionante contou com 60 participantes, além das crianças que participam da escola popular de agroecologia do CEM.

A RFS vem realizando intercâmbios de conhecimento entre seus integrantes desde 2018, fortalecendo suas iniciativas socioambientais em favelas, através da imersão em um território onde há uma organização com experiências já aprofundadas que tenha se tornado uma referência para a rede. Foram realizados também intercâmbios virtuais na pandemia através de lives e o primeiro intercâmbio internacional da RFS. Nestas ocasiões, os participantes conseguem trocar conhecimentos e habilidades, além de apresentar a organização que recebe o evento, diretamente em seu local de atuação.

O intercâmbio no CEM gerou em torno do tema da soberania alimentar, instigado por Ana Santos, coordenadora do CEM, e dos demais integrantes da instituição que atua na produção de alimentos agroecológicos em diversos quintais produtivos do Terra Prometida, nas área desmatadas do entorno, e também na sua sede comunitária e casa de apoio da organização.

Ana Santos. Foto: David Amen

O intercâmbio começou às 8h30 com um saboroso café da manhã agroecológico, repleto de legumes cozidos e sucos naturais de verduras e frutas, tudo colhido nos quintais da favela. Pastas e bolos foram produzidos com o aproveitamento integral dos alimentos, importante bandeira levantada pelo coletivo Mulheres em Ação, que atua dentro do CEM. “As mulheres do CEM” atuam na produção destas receitas culinárias e na defesa da soberania alimentar nas favelas. A dedicação e generosidade das diversas mãos que plantam, colhem, nutrem e trabalham coletivamente na Terra Prometida, como Leoildes Xavier, Maria do Carmo Silva, Vanessa Gomes, Rose Trovão, Jéssica Paz, Joyce Silva, Márcia Silva, Anne Santos, Evelin Dias, Kátia Rosa, além da Ana, foram o principal ingrediente para esta recepção tão amorosa para os que estiveram presentes.

Após a acolhida, os integrantes do CEM e os mobilizadores comunitários e aliados da Rede Favela Sustentável caminharam pelas ruas da comunidade, para conhecer a realidade de uma favela de aspecto rural e voltada para a agricultura urbana. Os participantes se reuniram em um ponto alto da comunidade, de onde se avista o Complexo da Penha, a Igreja de Nossa Senhora da Penha e toda a região da Leopoldina, tendo a Baía de Guanabara ao fundo. “Quando a gente fala de uma área verde na favela, a gente está falando de bem-viver e de construir outras alternativas para viver bem neste local!”, exclamou Ana em uma grande roda de apresentação.

Atividade de ioga. Foto: David Amen

A conexão entre os seres humanos e a terra onde plantamos e moramos foi exaltada a partir de um exercício coletivo de ioga, que refletiu sobre a potência da terra daquele território chamado Terra Prometida. O chão onde corpos negros são tombados pela violência do Estado é o mesmo que fornece o alimento agroecológico, sem agrotóxicos e lar aos moradores da favela.

Na sequência, os integrantes do CEM guiaram os participantes até a região conhecida como Pedreira, onde uma empresa francesa, Polimix, faz exploração mineral no maciço da Serra da Misericórdia há anos, à revelia das condições sanitárias impostas à vizinhança. Em meio aos montes de pó de pedra, os participantes do intercâmbio debateram sobre como o racismo ambiental reverbera na realidade da Terra Prometida e de outras favelas ao redor da pedreira, como Vacaria, Sem Terra e Estradinha, que convivem com problemas respiratórios, poluição sonora e outros impactos consequentes do pó de pedra, trânsito de caminhões carregados e explosões produzidas pela mineradora.

Intercambistas da RFS visitam à Pedreira. Foto: David Amen

Ilaci Oliveira, responsável pela Cooperativa Transvida e Lar dos Sonhos, projetos comunitários que também integram à RFS e atuam no Complexo da Penha, afirmou que grande parte das doenças respiratórias que acometem as pessoas que moram no entorno são causadas por uma grande nuvem cinza de pó nos arreadores da pedreira.

Toda esta difícil coexistência entre exploração predatória do meio ambiente e habitação popular é suavizada pelo vínculo comunitário plantado e colhido neste chão da Terra Prometida. E foi esta vivência de plantio coletivo que os participantes do intercâmbio da RFS no CEM puderam experimentar nos mutirões que integraram à programação do evento.

Dividindo-se em três grupos de atuação, a primeira turma caminhou até uma parte alta da comunidade, onde há um plantio agroflorestal. Marcelo Silva e outros integrantes do CEM organizaram este grupo de mutirão na agrofloresta, com a colheita de mato para cobertura do solo e o plantio de árvores frutíferas, a partir de mudas germinadas, cultivadas e multiplicadas no próprio viveiro do CEM. Leoildes recebeu no quintal da sua casa o segundo grupo para colheita de feijão andu e posterior debulhagem para fazer uma salada para o almoço. Este mesmo grupo ainda fez um breve mutirão no quintal coletivo da Casa de Apoio do CEM, para colheita da folha de aroeira para tintura e plantio e algumas manivas de aipim. O terceiro grupo permaneceu na sede comunitária para acolher crianças e jovens presentes no evento, sob organização da jovem Manuela Santos e de Joyce Silva, professora que atua em atividades infantis no CEM, com pintura de cartazes a partir do olhar das crianças sobre sua comunidade.

Instruções para hora do plantio de agrofloresta. Foto: David Amen

Depois de uma manhã de muitas conversas e mão na terra, o CEM ofereceu um almoço agroecológico, diversificado em cores e sabores, fruto principalmente do trabalho sensível das mulheres no plantio, na colheita e na cozinha. Feijoada vegetariana, almôndegas de banana, vinagrete com cascas de banana e outros pratos deliciaram os participantes do intercâmbio. As cores e sabores deixaram todos curiosos e interessados em reproduzir as receitas em suas comunidades.

Essa exaltação coletiva ao trabalho culinário do CEM estimulou as mulheres que atuam na cozinha a produzir um caderno de receitas, que será elaborado em breve pela instituição e compartilhado com toda Rede Favela Sustentável, uma espécie de resgate ancestral, de registro histórico-criativo, valorização da diversidade e estímulo à ampliação da cultura alimentar.

Além da sede comunitária, dos quintais produtivos e das ruas da comunidade que receberam a caminhada dos participantes, o evento se estendeu para o Bar das Pedras, cujo proprietário, Paulo, gentilmente ofereceu o espaço do seu comércio para abrigar as rodas de conversas do intercâmbio. Chamada de Café com Política, as rodas de conversas foram organizadas de forma a dialogar sobre três temas: soberania alimentar, mobilidade e racismo ambiental.

O grupo que debateu sobre o tema da soberania alimentar foi conduzido pela Ana Santos, trazendo uma reflexão sobre “o que é morar e plantar na favela?”. Questionados sobre a relação entre soberania alimentar e poder, a maioria afirmou que a favela não é a primeira coisa que vem à mente. Os integrantes da roda reforçaram que esse debate é também sobre direito à terra, à cidade e à própria favela. A favela escolher o que comer e como comer é poder, é revolucionário e é um direito arrancado de filhos e netos do êxodo rural, como lembrou a integrante Priscila Marcelino. Outra, Dalva Ribeiro, do Instituto Rosa Reviver, reforçou esse ponto ao fazer um relato emocionante, resgatando sua ancestralidade e a importância da conexão com a terra e os alimentos para sua saúde.

Já o tema da mobilidade teve a discussão mediada por Larissa Amorim, da Casa Fluminense, instituição parceira da RFS e do CEM nas atividades do intercâmbio. O tema central foi a garantia do direito ao transporte público e à cidade pela população favelada que convive com condições precárias de transporte, como ressaltou Alcebíades Fonseca, do NESPES em Mesquita, e Bruno Almeida do NOPH de Santa Cruz. A ausência de saneamento básico está atrelada à qualidade da mobilidade dentro da favela, lembrou Rosana Freitas, do Movimento de Mulheres Maria Pimentel Marinho, pois a circulação por becos e vielas coexiste com valas e alagamentos. 

Gisele Moura e demais participantes da roda de discussão de racismo ambiental. Foto: David Amen

A terceira roda de conversa foi conduzida por Gisele Moura da RFS e Jennifer Simões, da Casa Fluminense, e abordou o racismo ambiental focando no direito à água pela população favelada. A roda contou com reflexões potentes trazidas por Adilson Batista do Quilombo do Camorim sobre ancestralidade e os modelos de consumo e produção. Também surgiram falas sobre como o racismo permite que alguns espaços sejam configurados como zonas de sacrifício, onde se é permitido poluir, contaminar e negligenciar direitos. Laurinda Delgado do NESPES da comunidade Córeia em Mesquita falou sobre como essa é uma luta pelo direito à vida, integrada com o ambiente. Vanessa do CEM ressaltou a importância de não romantizar as ações que combatem o racismo e que implementam a justiça climática nos territórios, pois estas ações são necessárias por não haver a de garantia dos direitos básicos.  

Após as rodas temáticas, os grupos trouxeram ao coletivo os pontos debatidos pelos grupos menores. Concluiu-se a conversa com um tema que atravessa a atuação comunitária das lideranças presentes: a violência do Estado em territórios favelados, o genocídio dos jovens negros e a mobilização socioambiental frente os poderes armados.

David Amen, cria do Complexo do Alemão, cinegrafista e ativista do Raízes em Movimento, além de somar com seu olhar sensível para a cobertura audiovisual de todo o intercâmbio, introduziu a conversa sobre violência do Estado, relembrando as recentes chacinas que ocorreram nos Complexos da Penha e do Alemão, ambos situados na região da Serra da Misericórdia, como também as que ocorreram no Jacarezinho e em outras favelas.

Diversas falas na grande roda trouxeram a revolta e a potência da voz favelada que se depara com um Estado que entra na favela apenas com seu braço armado. Sem a oferta de serviços públicos de qualidade, é a ajuda mútua dos moradores que muitas vezes atende às necessidades emergenciais da favela. Sandra Teixeira, moradora da Vila Autódromo que atua no Museu das Remoções, na Zona Oeste, Jonathan, Evelin Dias, Paulo e Jéssica Paz, e moradores da Vila Cruzeiro contribuíram com falas impactantes e potentes sobre suas vivências.  

Para fechar o intercâmbio da RFS no CEM, Ana Santos dividiu dois rizomas de priprioca, erva originária da Amazônia, que ganhou de Paolo, integrante da Rede Carioca de Agricultura Urbana, para ser compartilhada e incentivar a troca de mudas e semente. Denise Santos, do Morro do Salgueiro, e Sandra Teixeira, da Vila Autódromo, receberam os rizomas, que são caules de onde brotam novas plantas quando cultivadas em terra fértil.

Que novas ideias e iniciativas socioambientais sejam semeadas e possam brotar nas favelas e periferias do Grande Rio, a partir da energia potente e dos saberes trocados na Terra Prometida!

Fotos e vídeo por David Amen. Assista ao vídeo do intercâmbio aqui.

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