Lideranças Quilombolas Refletem Sobre a Luta pela Titulação e Contra a Exclusão Durante Pandemia
Como parte das atividades iniciais do Circuito Urbano 2020 da ONU-Habitat em 5 de outubro, Dia Mundial do Habitat, a Rede Favela Sustentável (RFS) realizou uma aula pública online chamada “Como Andam os Quilombos do Rio em Tempos de Pandemia?” O tema do Circuito Urbano deste ano é “Cidades Pós-Covid: Diálogos entre Brasil e África Lusófona”, e o debate com os quilombolas do Rio de Janeiro permitiu visões advindas da profunda relação histórica entre Brasil e África. Quatro palestrantes falaram dos muitos desafios que suas comunidades enfrentam, citando preocupações como a importância da titulação de terras, acesso à saúde e combate ao racismo.
O evento foi mediado pelo historiador Bruno Almeida, coordenador-chefe do Núcleo de Orientação e Pesquisa Histórica de Santa Cruz (NOPH) e membro do Grupo de Trabalho de Memória e Cultura da Rede Favela Sustentável. Presentes no painel, estavam Luiz Sacopã, liderança do Quilombo Sacopã; Adilson Almeida, fundador e presidente da Associação Cultural Quilombo do Camorim (ACUQCA); Gizele Mesquita Martins, co-criadora da escola quilombola, Escola Cafundá Astrogilda, e dona do restaurante Tô Na Boa; e Bárbara Guerra, secretária do Quilombo Ilha Marambaia.
“Nós vamos sobrevivendo, vamos vivendo”, disse Luiz, chamando o impacto da pandemia em sua comunidade de “desastroso”. Os últimos números lançados pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) e o Instituto Socioambiental (ISA) computaram 4.958 casos confirmados de Covid-19 em comunidades quilombolas do país, 166 dos quais foram fatais. Mais de 20% dessas mortes foram no estado do Rio de Janeiro, onde já houve mais do dobro das fatalidades do que no penúltimo município na lista dos mais afetados: Macapá, no estado do Amapá.
Pesquisas apontam que comunidades quilombolas estão especialmente vulneráveis ao coronavírus. Bárbara disse que, em sua comunidade, um dos motivos para isso é que não há um centro de saúde comunitário, dificultando tanto a testagem do vírus quanto o tratamento de sintomas. De acordo com a CONAQ e o ISA, 1.219 pessoas estavam com sintomas da Covid-19 no dia da live, nos quilombos brasileiros, sem testes ou tratamento.
Apesar da Covid-19 ter reorganizado a vida cotidiana, palestrantes apontaram que seus desafios e objetivos fundamentais se mantiveram os mesmos desde antes da pandemia, incluindo a obtenção de títulos de terras, a superação do racismo geracional e a exclusão em relação aos serviços públicos. Nos últimos trinta anos, somente três quilombos no município do Rio receberam títulos de terra. “É muita luta, muita resistência“, disse Luiz, explicando como o Quilombo Sacopã está perto das etapas finais dentro do processo de titulação de terras.
O Quilombo Sacopã se localiza dentro de um bairro nobre carioca, a Lagoa, que é 91% branco. Luiz contou sobre a perseguição sem precedentes que ele e sua comunidade têm enfrentado, ao lidar com vizinhos e outros. “Imaginem um quilombo, no meio de condomínios de alto luxo, fazendo feijoada na lenha, jogando capoeira e fazendo jongo” ele refletiu. Luiz comenta que “o discriminador acha que nosso lugar é no subúrbio”, mas adverte que não conseguiram remover sua comunidade, explicando como sua situação não é diferente do resto dos quilombos do Rio neste aspecto.
O Quilombo Cafundá Astrogilda também está avançando em relação a titulações de terras, disse Gizele. “Eu acho que a gente conseguindo esse título, traz mais credibilidade para a gente“, ela disse. “Eu quero… que quando minhas filhas crescerem, a gente já ter esse título“.
A pandemia tornou as desigualdades raciais de longa data ainda mais visíveis. Gizele disse que o progresso da justiça racial depende da visibilidade e diálogo: “Essa é a história da minha luta, do meu povo e da minha cor, e eu vou dividir essa história com você”. Gizele disse que o racismo é comum nas interações com clientes de seu restaurante, quando “as pessoas não acreditam que eu sou a dona”.
Respondendo à pergunta proposta no evento, que discute como pessoas brancas podem usar seus privilégios para fortalecer o movimento quilombola, Gizele disse: “É não dividir. É agregar o tempo todo, deixando que esse preto conte sua história, ouvindo esse preto, e deixando que ele protagonize sua própria história”.
Nas palavras de Adilson, é importante ensinar a “o potencial histórico“ quilombola às crianças dos quilombos, levando adiante a “luta pelos mesmos ideais que nossos antepassados lutaram“. No Quilombo Cafundá Astrogilda, o projeto Ação Griô faz exatamente isso. Eles ensinam a história quilombola e seus costumes nas escolas públicas e particulares. Gizele disse que essas visitas pararam durante a pandemia da Covid-19, lamentando que “as pessoas se afastaram muito”.
Palestrantes enfatizaram que ações coletivas e centros comunitários de saúde têm sido de importância primordial durante a pandemia. “A gente precisa se cuidar, para cuidar do próximo“, disse Adilson.
“A gente já distribuiu, nesse período [de pandemia], mais de 600 cestas básicas aqui dentro, para as pessoas daqui… porque a situação ficou bem complicada“, disse Gizele. Depois do fechamento de seu restaurante Tô Na Boa, ela também começou a distribuir quentinhas a duas comunidades próximas. No dia que participou do evento online, ela já havia preparado 340 quentinhas.
Palestrantes falaram sobre como quilombolas se adaptaram à pandemia aumentando o uso de tecnologias e redes sociais. “[Estamos] ensinando aos mais velhos” a navegar nas redes, disse Gizele.
Foi a coletividade e a compaixão que ajudaram os moradores quilombolas durante esses tempos difíceis, disseram os palestrantes. O sentimento de Luiz, de que seu quilombo “simboliza o orgulho da negritude”, foi reiterado pelos outros palestrantes sobre suas próprias comunidades.